domingo, 20 de novembro de 2011

Adolescência: Modernidade e Pós-Modernidade (José Outeiral)


Capitulo 14


               Adolescência: modernidade e pós-modernidade



                     Não sou nenhum Spinoza para fazer piruetas no ar

                                                    Tchekhov
                                        

                                         Outro título possível...

                     A metamorfose ambulante de Pedrinho Skywalker em Gotham City


                                                Enunciado....
O enunciado  básico desta bricollage, escrita em um style um tanto pós-moderno, é que vivemos um período onde a sociedade e a cultura sofrem intensas mudanças e transformações de paradigmas e valores que incidem poderosamente na existência dos adolescentes, criando um gap generacional, entre os eles e os adultos. Este período é denominado por alguns autores como pós-modernidade.

                                               Definição

A pós-modernidade é um conceito multifacetado que chama a nossa atenção para um conjunto de mudanças sociais e culturais profundas que estão acontecendo neste final do século XX em muitas sociedades “ avançadas “. Tudo está englobado:  uma mudança tecnológica acelerada, envolvendo as telecomunicações e o poder da informática, alterações nas relações políticas, e o surgimento de movimentos sociais, especialmente os relacionados com aspectos étnicos e raciais, ecológicos e de competição entre os sexos. Mas a questão é ainda mais abrangente: estará a modernidade em si, como uma entidade sociocultural, desintegrando-se e levando consigo todo o suntuoso edifício da cosmovisão iluminista ?

David Lyon


                                     Metamorfose ambulante 

Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
lhe tenho horror
lhe faço amor.
Raul Seixas, Metamorfose ambulante





                                              - I -

A clínica do quotidiano nos permite constatar que, efetivamente, uma série de paradigmas e valores de nossa Sociedade, circunstâncias que se mantiveram relativamente estáveis no decurso de várias gerações que nos antecederam, estão sendo contestados, modificados e, mesmo, subistituidos por outros muito diferentes. Esta observação pode ser descrita como o “ advento “ da condição pós-moderna (  ou “ ... a lógica cultural do capitalismo tardio “, como descreve F. Jamelson ), ou seja, a etapa intermediária entre o “ esgotamento “  da modernidade e o período que a irá suceder e que não sabemos, exatamente, como será.

Na sociedade humana ( escrevem vários autores, como Bertrand Russel ) desde os seus primórdios, sempre foi assim: durante um certo espaço de tempo, às vezes, abrangendo alguns séculos, uma série de elementos sociais, econômicos e culturais permanecem , aparentemente, estáveis até que em um determinado momento, que poderá ocupar algumas gerações, ocorre uma “ ruptura “, surgindo momentos de instabilidade, incertezas e mudanças bruscas, e após uma nova etapa se estabelece. Foi assim, por exemplo, ao final do medievo, em torno dos séculos XV e XVI, quando a modernidade começou a se estruturar.

Uma metáfora que costumo utilizar para dar uma maior nitidez ao que escrevo ( valendo sempre lembrar, com Goethe, que “ ...a nitidez é uma conveniente distribuição de luz e sombra ... “, ou seja, que não pretendo “ explicar tudo “ ) é o movimento das placas tectonicas. Estas placas, que compõem a superfície terrestre, durante longos espaços de tempo , aparentemente ( embora estejam, na verdade, em constante movimento e produzindo um acúmulo de energia ), parecem estar em repouso, até que o acúmulo de energia produz movimentos perceptíveis a que denominamos terremotos e novas acomodações surgem então. Não esqueçamos que nosso continente sul-americano era unido à Africa ... Estas novas acomodações  darão lugar a novos terremotos e assim sucessivamente, num movimento contínuo. Com o desenvolvimento da sociedade Humana acontece algo parecido: a Idade Média, como comentei antes, foi “ estável “ durante alguns séculos, ocorreu um “ terremoto “ durante algumas gerações, e se estabeleceu, então, a Idade Moderna.

É possível, pensam alguns autores, que estejamos vivendo um “ terremoto “ – a condição pós-moderna - , período de transição entre a modernidade  e o que a irá suceder ... logo surge a pergunta sobre  que fatores provocam essas “ mudanças “ ? Voltemos, por breves momentos e com uma lente de maior aumento, até à Idade Média, caracterizada, especialmente, pela estrutura feudal e por uma visão de mundo teológica. O desenvolvimento  do comércio trazido pelas grandes navegações, o avanço do conhecimento científico sobre a interpretação teológica do mundo, o desenvolvimento das cidades e do comércio ( surgem os “ burgos “, as cidades, muitas vezes cidades-estado , e os “ burgueses “, uma nova classe social ), a invenção da imprensa ( a descoberta de  J. Gutemberg – 1397/1468 - colocou o conhecimento obtido através dos livros e da Bíblia- a primeira Bíblia foi impressa em 1454 -, em especial, ao alcance de muitos, o que antes era restrito ao trabalho dos monges copistas e que permanecia na posse da Igreja, originando mudanças das quais o livro de Humberto Eco, O nome da rosa , nos relata magnificamente ), na esteira desse processo surge a Reforma Protestante e a Contra-reforma, enfim, um sem número de fatores sociais, econômicos e culturais se modificaram, Houve um esvaziamento do medievo nos séculos XV, XVI e XVII e o nascimento e o desenvolvimento da modernidade. A modernidade , que é representada, por exemplo,  pelo ideário da Revolução Francesa de 1779 -  liberdade, igualdade e fraternidade – propiciou o surgimento da revolução industrial, a noção de Estado Nacional , o respeito  pelo cidadão e pelas leis constitucionais, uma ênfase sobre a “ razão “ e no conhecimento cientifico, o estabelecimento da “ família burguesa “, configurando uma visão de mundo  ( explicitada por filósofos como Spinoza, Descartes, Kant e Comte, entre outros ) considerada como o Iluminismo, período das luzes, em oposição a agora chamada idade das trevas , a Idade Média.

A Revolução Industrial, por exemplo, consolidou a modernidade e artistas a descreveram com clareza. No plano religioso a Reforma desencadeada por Martim Lutero ( não esqueçamos que foi ele quem traduzindo e assim difundindo a Biblia, com a possibilidade oferecida pela invenção de Gutemberg,  unificou o idioma Alemão ) representou uma transformação ao atingir a hegemonia da Igreja Católica e do papado romano, criando o cenário para o tema que Max Weber explora em seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo.

Neste período um novo conceito de família, a família burguesa, surge, como tão bem descreve Ph. Ariés . A própria arquitetura doméstica se modifica, surgindo a idéia de privacidade e, por exemplo, os quartos de dormir , o que não existia, praticamente, até então: todos dormiam numa mesma peça, adultos, crianças e visitantes ocasionais, próximos ao local de preparo das refeições, espaço aquecido. O crescimento das cidades criou, também, a necessidade dos nomes-de-famíia, pois se nas pequenas aldeias todos se conheciam e a genealogia era sabida pela coletividade,  na cidade era necessário nomear a família para dar identidade  : o pescador passou a ter um nome de família e a se chamar Johan Fisherman... ou o emigrante portugues, vindo para o Brasil no século XVIII, chamado Manuel e habitante da pequena Vila dos Outeiros, região de outeiros – morros -  no norte de Portugal, quase na Galícia, passou a ser chamado de Manuel Outeiral ... O “ al “ acrescido pela influência moura de quase 900 anos de domínio na península ibérica.

A passagem da Idade Média para a Idade Moderna não se realizou sem “ traumas “, mas sim através de uma “ turbulência “, às vezes fraturas bruscas e outras uma suave découpage, que envolveu, muitíssimas vezes, a violência: Nicolau Copérnico e Galileu Galilei são  exemplos desses tempos de mudança, quando ao afirmarem a teoria heliocentrica, com os astros girando ao redor do sol, em oposição a crença da época de que todos os astros giravam ao redor da terra, foram execrados por determinação do status quo ou do establishment vigente (  uso expressões em idiomas diferentes para marcar o texto, um hipertexto,  pois, como sabemos ou não,  o latim foi o idioma da Idade Média, o francês da Idade Moderna e o inglês é o da Pós-modernidade ... ). As idéias destes matemáticos e astrônomos colocavam em risco os paradigmas e os valores da época e eles foram punidos, na verdade, na busca do poder em banir  as novas idéias laicas e o espírito científico que eles representavam e que colidiam com um modelo de interpretação teológico da vida e do mundo ( Gleiser, 1997 ).

-        II –

W. Bion, psicanalista inglês, escreve sobre estes fenômenos sociais ao desenvolver os conceitos de   mudança catastrófica ( que se superpõe ao que denominei de “ terremoto “ na metáfora geológica ) e do papel do  místico . Como médico e psicanalista meu vértice de observação dos fatos é, naturalmente, limitado: a complexidade destas questões exige, na verdade, o concurso de várias áreas do conhecimento. Até agora  me aventurei de maneira arrogante, entre outros, na sociologia e na filosofia, elementos fora de meu quotidiano médico, mas buscava preparar o caminho para poder escrever sobre minha prática, articulando conceitos e buscando, se tiver engenho e sorte para tanto, fazer uma razoável tessitura destes campos.

L. Grimberg ( Grimberg, 1973 ) tece considerações sobre a  mudança catastrófica, se referindo ao campo psicanalítico, mas expressando idéias que se aplicam à sociedade como um todo:

Mudança catatrófica é uma expressão escolhida por Bion para assinalar uma conjunção constante de fatos, cuja realização pode encontrar-se em diversos campos; entre eles, a mente, o grupo, a sessão psicanalítica e a sociedade. Os fatos a que se refere  a conjunção constante podem ser observados quando aparece uma idéia nova ( ... ) a idéia nova contém, para Bion,, uma força potencialmente disruptiva que violenta, em maior ou menor grau, a estrutura do campo em que se manifesta. Assim, um novo descobrimento violenta a estrutura de uma teoria pré-existente (... ) Referindo-se a fatos em particular, tal como acontecem nos pequenos grupos terapêuticos, a idéia nova expressada numa interpretação ou representada pela pessoa de um novo integrante, promove uma mudança na estrutura do grupo. Uma estrutura se transforma em outra através de momentos de desorganização, sofrimento e frustração; o crescimento estará em função dessas vicissitudes...

Pelo exposto, pensando com W. Bion, teremos que quando um conhecimento ( ou um fato novo surge ), ele altera e transforma a estrutura de uma Sociedade, que não consegue mais exercer uma função continente adequada para o que era considerado um conjunto de verdades ( paradigmas, valores, etc... ); nesse momento ocorre uma mudança catastrófica e uma nova estrutura se estabelece. Uma outra concepção importante que nos oferece W. Bion diz respeito ao que ele denomina o místico e a relação deste com o grupo.  O místico como o representante grupal de uma nova idéia ou concepção.

Vejamos, novamente,  o que escreve  L. Grimberg.

O indivíduo excepcional pode ser descrito de diferentes maneiras; pode-se chamá-lo de gênio, místico ou messias. Bion utiliza, de preferência , o termo místico para referir-se aos indivíduos excepcionais em qualquer campo, seja o científico, o religioso, o artístico ou outro (...) O místico ou o gênio, portador de uma idéia nova é sempre disruptivo para o grupo (...) de fato, todo gênio, místico ou messias será criativo e niilista, ambas as coisas seguramente (...)  desde que a origem de suas contribuições será seguramente destrutiva de certas leis, convenções, cultura ou coerência de algum grupo...

Sugiro, seguindo essa linha de pensamento, que os adolescentes exercem ao longo de muitos momentos históricos o papel do místico, promovendo mudanças catastróficas e fazendo, assim, andar o carrossel da saga humana, a evolução de nossa sociedade. W. Bion, inclusive, postulou em uma palestra que adolescência é um exemplo de turbulência emocional, que ocorre quando uma criança que parecia calma, tranqüila, comportada e dócil se torna agitada, contestadora e perturbadora. Em um dos capítulos deste livro descrevi  como os adolescentes, tanto por motivos internos (  buscando, por exemplo,  externalizar ativamente na transformação social os processos  internos de transformação corporal  que sofrem passivamente, realizando a transformação do passivo em ativo, como sugere S. Freud ao descrever o par antitético passividade-atividade,  ou na externalização social da rivalidade resultante da re-edição edípica nesta etapa) e/ou externos ( sentido crítico social aguçado ao alcançar níveis abstratos de pensamento, ausência de compromissos sociais como adultos, pais ou profissionais, etc. )  é, historicamente, um dos principais agentes de transformação social..

-        III –

Embora utilize, obviamente, referenciais teóricos, quero dirigir minhas idéias pela clínica e pelo quotidiano de minha prática, que representa mais de três décadas de atividade psiquiátrica e clínica com crianças, adolescentes e suas famílias. Não tenho o intento de estar construindo um paper ou ser um scholar, mas sim o de estar buscando interlocutores para discutir minhas idéias, ou a síntese de um conjunto de idéias que sou capaz de realizar hoje . Procuro também uma linguagem, tanto quanto possível, que seja comum, distante do jargão técnico habitual : se for possível, com esta linguagem com a qual nos relacionamos no dia-a-dia e tão ao gosto de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista britânico. Vale citar, a propósito, um filósofo fundamental para a cultura contemporânea e, particularmente, para a pós-modernidade que foi F. Nietzsche ( Apud Souza, 1989 ).

Quem sabe o que é profundo, busca a clareza; quem deseja parecer profundo para a multidão, procura ser obscuro, pois a multidão toma por profundo aquilo que não vê: ela é medrosa, hesita em entrar na água.

Retomemos alguns conceitos que nos serão úteis, embora referidos mais profundamente nos capítulos iniciais. É bem conhecido que a adolescência é um período evolutivo onde transformações bio-psico-sociais acontecem, determinando um momento de passagem do conhecido mundo da infância ao tão desejado e temido mundo adulto. A adolescência é caracterizada por inúmeros elementos, dos quais quero referir alguns: (1) a perda do corpo infantil, dos pais da infância e  da identidade infantil ; (2) da passagem do mundo endogamico ao universo exogamico ; (3) da construção de novas identificações assim como de desidentificações; (4) da resignificação das  “ narrativas “ de self;  (5) da reelaboração do narcisismo; (6) da reorganização de novas estruturas e estados de mente; (7) da aquisição de novos níveis operacionais de pensamento ( do concreto ao abstrato ) e de novos níveis de comunicação ( do não verbal ao verbal ); (8)  da apropriação do novo corpo; (9) do recrudescimento das fantasias edípicas; ( 10) vivência de uma nova etapa do processo de separação-individuação; (11)  da construção de novos vínculos com os pais, caracterizados por menor dependência e idealização; ( 12 ) da primazia da zona erótica genital; (13) da busca de um objeto amoroso; (14) da definição da escolha profissional ( 15) do predomínio do ideal de ego  sobre o ego ideal  ; enfim, de muitos outros aspectos que seria possível seguir citando, mas, em síntese, da organização da identidade em seus aspectos sociais, temporais e espaciais ( Aberastury & Knobel, 1971; Grimberg, 1971; Outeiral, 1982; 1992; 2000 ). Em vários trabalhos anteriores enfoquei diferentes aspectos deste momento evolutivo. As transformações da adolescência ocasionam flutuações que se caracterizam por momentos progressivos – onde predomina, entre outros aspectos, o processo secundário, o pensamento abstrato e a comunicação verbal – e momentos regressivos – com a emergência do processo primário, da concretização defensiva do pensamento e a retomada de níveis não verbais de comunicação.

É necessário, também, considerar que, da mesma forma com que o conceito de criança como indivíduo em desenvolvimento e com necessidades  específicas surge em torno do século  XVIII ( Ariés, 1975 ), o conceito de adolescência como período evolutivo se organiza no século XX, entre as duas grandes guerras mundiais ( 1914-18 e 1939-45 ). Assim, adolescência é um fenômeno bastante recente e que requer, ainda, muitas teorizações. Em capítulos anteriores este aspecto foi abordado com mais detalhes.

Alguns autores tem desenvolvido teses referindo que o conceito de criança se modifica  de maneira intensa na cultura contemporânea. O Caderno Mais, da Folha de São Paulo ( 24 de julho de 1994 ), apresenta ensaios neste sentido e o editor escreveu o seguinte:

O reino encantado chega ao fim. A criança vira paródia dos devaneios adultos na era pós-industrial. A infância talvez tenha sido a mais duradoura das utopias concebidas pela modernidade. Como tantos outros ideais imaginados nos últimos 200 anos, o do mundo maravilhoso das crianças também entra em crise na era pós-industrial e pós-moderna. O aumento da violência contra crianças e o da criminalidade infantil, o abandono e o sacrifício a que estão sujeitas no centro e na periferia do capitalismo, o excesso de produtos tecnológicos destinados ao seu consumo não fazem hoje mais o que explicitar o outro lado deste sonho: uma criatura perversa do próprio mundo adulto.

Neste mesmo Caderno Mais, Alfredo Jerusalinski e Eda Tavares dão o significativo título a seu artigo: Era uma vez ... já não é mais. Entre uma mãe dispersiva e um pai desqualificado, a criança vai se introduzindo no mundo virtual.

A observação clínica me permite conjecturar que o período de latência, essencial ao desenvolvimento e tal como descrito por Sigmund Freud, se abrevia , invadido por uma adolescência cada vez mais precoce. Este período de latência,  corresponde, de certa maneira, nas teorias do desenvolvimento à idade escolar . Laplanche e Pontalis, em seu clássico Vocabulário da Psicanálise, descrevem este período de latência nos relembrando de sua importância no desenvolvimento psíquico.

Período que vai do declínio da sexualidade infantil ( aos cinco ou seis anos ) até o início da puberdade e que marca uma pausa na evolução da sexualidade. Observa-se nele, desse ponto de vista, uma diminuição das atividades sexuais, a dessexualização das relações de objeto e dos sentimentos ( e, especialmente, a predominância da ternura sobre os desejos sexuais), o aparecimento de sentimentos como o pudor ou a repugnância e de aspirações morais e estéticas. Segundo a teoria psicanalítica, o período de latência tem sua origem no declínio do complexo de Édipo; corresponde a uma intensificação do recalque – que tem como efeito uma amnésia sobre os primeiros anos -, a uma transformação dos investimentos de objeto em identificações com os pais e a um desenvolvimento das sublimações.

Considerando que minha conjectura anterior tenha algum sentido, poderemos imaginar o que representa a excessiva exposição à sexualidade e ao erotismo genital  a que são submetidas as crianças, numa forma que configura um abuso, através da cultura;  me refiro por exemplo, aos meios de comunicação e a responsabilidade da família e da sociedade neste processo . A abreviação do período de latência  resulta em dificuldades que repercurtirão, é evidente, em vários aspectos da estruturação do psiquismo, interferindo no desenvolvimento normal, tanto na área da conduta como nos processos afetivos e cognitivos. Num contraponto à “  invenção “  da infância pela modernidade temos, hoje, a  “ des-invenção “ da infância pela pós-modernidade.

Não encontramos mais, com a mesma incidência, na  clínica contemporânea, como escrevem diversos autores ( Outeiral, 2000 ),  as clássicas histerias estudadas por  S. Freud mas, em seu lugar, detectamos quadros correlatos da “ pós-modernidade “, como os transtornos narcísicos, síndromes borderline ( que Ch. Bollas em seu livro Hysteria define como a expressão atual das “ antigas “ histerias ...), tendências anti-sociais, fobias, transtorno de pânico, etc.... Se considerarmos os transtornos pela “ abreviação “ da infância como  “ acontecimentos clínicos pós-modernos “, poderemos pensar que a velocidade e a fragmentação, junto com outros elementos etiológicos,  configurariam como uma síndrome do zapping,”  a dificuldade de  concentração e a necessidade de ficar passando de um canal ao outro de televisão “, alguns dos transtornos vinculados ao déficit de atenção e à hiperatividade...
-        IV –

Quero, agora, convidar o leitor a compartir algumas observações, resultantes de três décadas de trabalho clínico e de observações do quotidiano. Estas observações se dirigem a transformações sofridas pela família e pelos adolescentes nestes trinta últimos anos. Recordemos a hipótese da metáfora geológica, a de que estamos vivendo o “ terremoto “ e que este acontecimento envolve, habitualmente,  duas ou três gerações , para desenvolvermos nossas idéias...

Vejamos as transformações sofridas pela família, depois de muitas gerações com poucas mudanças e uma longa ( talvez alguns séculos ) estabilidade.

(a) na década de setenta as questões familiares nos conduziam a refletir sobre a passagem da família patriarcal para a família nuclear. Devemos considerar nesta mudança múltiplos elementos, dos quais quero referir dois: (1) o crescimento rápido e desordenado dos centros urbanos às custas de um intenso fluxo migratório vindo das zonas rurais ( na década de quarenta, no século XX, o Censo Demográfico do IBGE revelava que cêrca de 30 % da população vivia nas grandes cidades, enquanto 70% habitava as zonas rurais e pequenas cidades , situação que se inverte na passagem para o século XXI quando 80% da população habita nos centros urbanos maiores e apenas 20% nas zonas rurais ) e (2) o ingresso da mulher, a partir dos anos sessenta especialmente ( legalmente até 1962 a mulher necessitava da aprovação do marido para ter atividades fora do lar ), no mercado de trabalho. A família patriarcal, contituida por grupos familiares de vários graus de parentesco ( avós, tios, primos, etc ) , habitando espaços próximos e, às vezes, participantes de uma  mesma atividade produtiva, oferecia à criança e ao adolescente uma rede familiar de proteção, no caso de dificuldades por parte dos pais, assim como um número maior de modelos para identificação ( mais uniformes,  coerentes e estáveis e  pertencentes a uma mesma cultura )  . Este grupo familiar é próprio das zonas rurais e dos pequenos vilarejos do interior. Com a rápida migração para os grandes centros urbanos passamos a encontrar a família nuclear, constituida por um casal ( ou somente pela mãe, em pelo menos um terço das famílias segundo o IBGE ) e um ou dois filhos, longe do grupo familiar de origem, anônimos, isolados  e solitários na multidão das grandes cidades e desenraizados de suas culturas. Exatamente nesta década observamos que crianças e adolescentes passam a chamar de tios  os adultos em geral e os professores em particular . Estes novos tios penso que são assim denominados por uma nostalgia pelo grupo familiar mais amplo e protetor: crianças e adolescentes ( e seus pais )  em busca da família perdida. Paulo Freire não concordava com esta denominação, mas penso que, se nos anos setenta, os alunos chamavam professores de tios, hoje os professores são convocados inclusive a exercer funções maternas e paternas.

(b) na década de oitenta as questões diziam respeito às novas configurações familiares: famílias reconsitituidas, com filhos de casamentos anteriores e do novo casamento, tendo este fato social o reconhecimento com a lei do divórcio. Numa sala de aula, nos anos cinquenta, poucas crianças tinham os pais separados, enquanto hoje um grande número vive esta situação.

(c ) na última década temos a possibilidade de uma mulher ter um filho sem relações genitais com um homem, através da fertilização assistida: o desenvolvimento tecnológico nos aporta novas estruturas familiares ...  Não uma “ produção independente “, mas uma gestação e um bebê sem ter acontecido  uma relação genital e “ o pai “ apenas um “ desconhecido doador de esperma “... Algumas pesquisas já especulam com a possibilidade de uma criança ser gerada apenas com células da mãe.

A mulher obtém uma definitiva inserção no mercado de trabalho e o tempo com os filhos se torna menor do que nas gerações anteriores. Creches, berçários e as escolas infantís se tornam necessárias para compensar a ausência materna, e nem sempre são locais adequados e às vezes a família não tem nem acesso a esses recursos.  A função paterna é cada vez mais inexistente nos grandes centros urbanos. É interessante ler o que Zuenir Ventura escreve em seu livro Cidade Partida sobre esta questão. O autor descreve o Rio de Janeiro de hoje e suas dificuldades e comenta o que segue, a propósito de um baile funk, onde duas “ galeras “ começavam a brigar... Ari da Ilha, que estava presente,  é um homem velho e doente, mas um respeitado líder da comunidade, e intervém da seguinte maneira para “ acalmar “ os ânimos ...

Ari da Ilha pegou o microfone, mandou parar o som e começou a falar. O discurso a princípio foi todo de persuasão.
-Nós estamos aqui para nos divertir. É um baile de paz. Vocês têm que dar um bom exemplo. Esse baile não pode ter tumulto.
Como um pai enérgico daqueles 2 mil jovens, foi aos poucos engrossando  a mensagem, mas mantendo o bom humor.
-Vocês conhecem nosso regulamento, não conhecem ? Quem fizer coisa errada leva palmada na bunda.
Ficou claro até para mim que ele estava usando um eufemismo. Sem dúvida, palmada queria dizer palmatória, um castigo muito usado em Lucas e que poderia até quebrar mãos.
A ordem definitiva veio no final da fala:
- E vamos acabar com esse negócio de trenzinho. Isso dá confusão.

O que aconteceu ?

 Ari da Ilha, velho e doente, mas respeitado, exerceu uma função paterna e restabeleceu a ordem na festa !

Agora vejamos as mudanças que observo nos adolescentes, período que a Organização Mundial da Saúde situa entre dez e vinte anos. Revisando os conceitos teremos que puberdade corresponde aos processos biológicos e adolescência a fenômenos psico-sociais. Nos anos setenta a criança se tornava púbere e após adolescia; nos anos oitenta puberdade e adolescência ocorrendo concomitantemente e na última década observo conduta adolescente ( namoro, contestação, etc. ) em indivíduos ainda não púberes, antes dos dez anos, com sete ou oito anos. Penso, inclusive, que o conceito de infância, como momento evolutivo e com necessidades específicas, conceito estabelecido com o Iluminismo, sofre o risco de sofrer profundas transformações: alguém terá escrito, em algum lugar, sobre o risco de termos o fim da infância na cultura contemporânea.

Existem, é necessário ressaltar, ainda outros diferenciais, como o ambiente socio-econômico e cultural onde o adolescente se desenvolve. Nas classes sociais menos favorecidas o processo adolescente começa e termina mais cedo, enquanto que nas classes sociais mais favorecidas acontece também mais cedo, mas termina bem mais tarde.

Em décadas anteriores a criança ( como nas sociedades primitivas ), após breves rituais de inciação se tornava um adulto ( Outeiral, 1998 ) . Hoje a adolescência se alonga cada vez mais, ocorrendo, inclusive, a adultescência, termo,  veremos adiante, que designa o ideal de ser adolescente para sempre, com adultos tendo condutas adolescentes e faltando padrões adultos para os “ verdadeiros “ adolescentes se identificarem.

Concluindo, após várias gerações onde paradigmas e valores permaneciam estáveis temos, hoje, uma sociedade em mudança, com rápidas transformações, numa alteração, por vezes, frenética ou maníaca, onde a incerteza e a dúvida, nas famílias e nas escolas, são evidentes.





-        V –

Considerando que este conjunto de idéias seja verdadeiro, quais serão os paradigmas ou valores que estão sendo contestados, modificados ou substituídos por outros ?

Como adultos “ modernos “ ( pais, professores, etc. ) e adolescentes “ pós-modernos “ se relacionam ?

Como lidar com, por exemplo, a circunstância de que a globalização , pela facilidade e rapidez dos meios de comunicação, cria desejos e uma lógica cultural própria dos países com um desenvolvimento capitalista avançado em crianças e adolescentes de um país que, como o nosso, nem ingressou plenamente na modernidade ? Como, então, nós , adultos “ antigos “, posto que “ modernos “, poderemos entender e nos comunicar  com adolescentes ( inclusive os de periferia ) que, por hipótese, querem um tênis de marca  norteamericana e um boné do The Lakers  usados por adolescentes classe média alta de Boston e Chicago ? A globalização dissemina, em espaços sociais e culturais muito diferentes , o mesmo desejo...

É difícil encontrarmos nos adolescentes de hoje uma continuidade com as experiências adolescentes dos pais: por exemplo,  o Pedrinho do Sítio do Pica-Pau Amarelo de Monteiro Lobato, típico adolescente da modernidade, honesto, respeitoso com os mais velhos, nacionalista, integrado na família, reflexivo e preocupado com os fatos sociais e da natureza, etc. O que encontramos, brinco, é um Pedrinho Skywalker , mistura complexa e confusa do Pedrinho do Monteiro Lobato e Luke Skywalker , o adolescente do seriado  pós-moderno Guerra nas Estrelas de G. Lucas.

São muitas as perguntas e eu não tenho respostas: primeiro porque, é obvio, não tenho as respostas e se,  por acaso, as tivesse , não mataria uma  boa pergunta com uma resposta, como o filósofo Blanchot ensinou ( A resposta é a desgraça da pergunta ). Procuro, pois,  produzir inquietação e dúvida, reflexão e pensamento. Novamente quero buscar a ajuda de duas citações de F. Nietzsche.

O que enlouquece é a certeza, não a dúvida.

É do caos que nasce uma estrela.

Como bons “ modernos “  e  “ iluministas “, nascidos em um país que tem como dístico do pavilhão nacional a expressão   Ordem e Progresso,  vinda do positivismo do século XIX e das primeiras décadas do século XX, obra de Augusto Comte, acreditamos que a dúvida e o caos são indesejáveis e com isto perdemos a chance de descobrir que é também na ausência, na falta, na dúvida e no caos que surge o pensamento e a razão e não só na ordem e na estabilidade.



                                              
-        VI –

É necessário conceituar, o que não é tarefa fácil, modernidade e pós-modernidade. Para tornar a tarefa menos insípida, vamos recorrer a alguns autores.

Dois filósofos, um brasileiro e outro francês, tentam dar conta da questão e escrevem :

A época em que vivemos deve ser considerada uma época de transição entre os paradigmas da ciência moderna e um novo paradigma, de cuja emergência vão se acumulando os sinais. E que, na falta de uma melhor designação, chamo de ciência pós-moderna
B. Santos ( Santos, 1989 )

A que chamamos pós-modernidade ? (...) Devo dizer que tenho uma certa dificuldade em responder a esta questão (...) porque nunca compreendi completamente o que se queria dizer quando se empregava o termo modernidade.
M. Foucault ( Apud Smart, 1993 )

O nosso humorista maior, Millor Fernandes, também se aventura no tema.

Afinal, o que é pós-modernismo ? O modernismo um pouco depois ? Não, acho eu, mas o próprio modernismo, apenas já velho e precisando mudar de nome. E o que é modernismo ? Arte conceitual, criações minimalistas, música decididamente anti-musical, algaravias. Sinônimo daquilo que em tecnologia se chama progresso. Ambos, modernismo e progresso, já sendo, isto é, já eram ...
Millor Fernandes  ( Fernandes, 1994 )

Como reconhecer o pós-moderno: se de algum modo você consegue definir se o quadro está de cabeça para baixo ou não – é pintura pós-moderna./ Se você entende tão bem como quando lê uma bula de hidropitiasinolfoteína – é literatura pós-moderna./ Se você vê, vira e revira, e o sentido está no revirar e no não dito – é poesia pós-moderna./ Se você tem de segurar a tampa enquanto faz xixi no vaso, é design pós-moderno./ Se você devolve ao bombeiro hidráulico pensando que é uma ferramenta esquecida, e depois descobre que é um presente do seu gatão – é escultura pós-moderna./ Se chove dentro – é arquitetura pós moderna. / Se você fracassa porque procurava exatamente a anti-vitória – é filosofia pós-moderna./ Se você pratica homossexualismo não por formação ou destinação biológica, mas  por experimentalismo sadomasoco-niilista – você é uma boneca pós-moderna e muito da louca, bicho (a) !
Millor Fernandes ( Fernandes, 1994 )

Millor Fernades, como eu e muitos outros, é “ apenas “ um moderno e, talvez, por isso tome esse viés, digamos, “ pouco deslumbrado “ para definir a pós-modernidade: ao contrário do que talvez escreveriam  alguns autores franceses .

O materialismo histórico nos ensina que as transformações que se operam nas sociedades e nas culturas se dão através de um continuun progressivo, e somente  após um certo grau de acumulação quantitativa teremos uma alteração qualitativa, como pude expor com mais detalhes antes. Este acúmulo de experiências, que determinam as alterações qualitativas, são observados periodicamente na história da humanidade, ocasionando mudança nos valores éticos e morais, na estética e na produção cultural, na estrutura e na dinâmica das   organizações sociais assim como na política, na concepção da família e nas relações entre os homens. Como vimos, estas transformações que ocorrem na sociedade costumam acontecer após alguns séculos de estabilidade.

Feathstone ( Feathstone, 1995 ) considera, com razão, que o termo modernité foi introduzido por Charles Baudelaire ( 1821-1867 ) para quem moderno significava um “ senso de novidade “. As sociedades modernas, para este “ poeta maldito “ , produziriam um desfile incessante de mercadorias, edificações, modas, tipos sociais e movimentos culturais,  todos destinados a uma rápida substituição por outros, reforçando um sentido de transitoriedade ao momento presente. O flâneur, nos espaços públicos das grandes cidades, era capaz de vivenciar aquelas imagens e fragmentos caleidoscópicos cuja novidade, imediatez e vividez, juntamente com a sua natureza efêmera e justaposição, frequentemente parecia estranha “.

O texto seminal de Charles Baudelaire ( Baudelaire, 1869 ) sobre a modernidade e que marca a incorporação do termo e de seus conceitos ao pensamento ocidental é o ensaio  intitulado Sobre a modernidade ( publicado póstumamente, em 1869, na revista L’Art Romantique ) onde ele se revela o precursor da estética moderna e se torna um ponto de referência para a compreensão da modernidade hoje. Sua écriture baseia-se numa crítica a Constantin Guiz, desenhista, gravador e aquarelista, e ele conclui suas observações da seguinte maneira:

A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma metade da arte, sendo a outra o eterno, o imutável ... (... ) Constantin Guys buscou por toda a parte a beleza passageira e fugaz da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar de modernidade.

O termo pós-modernidade, por sua vez, aparece também através da pena de Charles Baudelaire e Th. Gautier, em 1864, quando estes poetas escreveram “ pós-modernidade “ ao fazerem uma crítica da “ sociedade moderna e burguesa da época “ ( Gardner, 1993; Christo, 1997 ). É, entretanto, somente em 1947, que Arnold Toynbee, matemático, historiador e filósofo  inglês sistematiza a observação de que uma série de paradigmas  da modernidade estavam sendo contestados e transformados pela, assim chamada, pós-modernidade.

O escritor ingles Charles Jencks, entretanto, retira dos franceses a introdução da expressão “ pós-moderno “ e a  credita ao poeta John Watkins Chapman, seu conterrâneo, que a teria usado em 1870 ( Appignanesi & Garrat, 1995 ).

Ricardo Goldemberg (  Chahlub, 1994 ), cita Luc Ferry situando o pós-modernismo entre 1975 e 1976 e lembra de um filme de Mel brooks. Nesse filme dezenas de homens lutam com espadas e lanças. Soa, então, um apito e todos param de lutar e começam a pintar. Um deles explica então que começou o Renascimento. Lógico que as transformações não se dão desta maneira, mas, repito, ocupam muitas gerações.

Jean-François Lyotard ( Smart, 1993 ) polemiza, como é necessário, sobre a expressão pós-modernidade, ao escrever:

... ou será a pós-modernidade o passatempo de um velhote que espiona o monte de lixo à procura de restos , que fala de inconsciências, lapsos, limites, fronteiras, gulags, parataxes, absurdos ou paradoxos, transformando-os na glória de sua novidade, na sua promessa de mudança ?

Comparto com alguns autores, especialmente Sérgio Rouanet ( Rouanet & Mafessoli, 1994 ) a necessidade de discutirmos se o Brasil, com suas particularidades, passa da modernidade à pós-modernidade, pois é evidente que a modernidade não se “ instalou “ efetivamente entre nós e, consequentemente, não podemos falar de um esgotamento da modernidade em nosso país. Mas, como nos trópicos as possibilidades nunca se esgotam e a globalização é uma realidade, não só econômica mas também cultural, a pós-modernidade poderá estar entre nós...

É interessante, agora, explicitar algumas das características da pós-modernidade: velocidade, banalização, cultura do descartável, fragmentação, globalização,  mundo de imagens, virtualidade, simulacro, paródia, des-subjetivação, des-historicização, des-territorialização,  etc. Não se trata, é evidente, de tomar a pós-modernidade como a encarnação do mal, ela é um momento de passagem e como tal de inevitável turbulência . Não sei, ao certo, se ela existe realmente como momento histórico e cultural , ou se é apenas uma criação intelectual, mas é interessante e útil que façamos, a partir dessas idéias um exercício de compreensão deste mal-estar na cultura, parodiando o criador da psicanálise. .


-        VII

Ao comentar os aspectos que envolvem o processo adolescente, estrutura e dinâmica que abarca tanto o adolescente como sua família e a sociedade, quero considerar  novamente que esta experiência evolutiva se realiza em um momento em que a sociedade sofre  intensas e rápidas transformações ( talvez, melhor dito, um conjunto de rupturas ) de uma série de paradigmas ( idéías, valores morais e estéticos, processos de pensamento, etc . ) que podem ser considerados dentro do conflito “ modernidade versus pós-modernidade “.  Assim, vou abordar uma série de elementos paradigmáticos que serão comentados cada um por sua vez, embora queira deixar bem claro que cada um deles é um fio de uma trama tecidual, elementos entremeados, partícipes de uma interação dialética, que estarão isolados apenas por uma questão didática e metodológia. Fica ao leitor a sugestão para que estabeleça a ligação entre eles, organizando este puzzle complexo e fragmentado que é o quadro de nossa sociedade atual e, inclusive, aumente a lista dos paradigmas abordados.

1.      O tempo rápido ou A geração fast. O mundo delivery

A rapidez das transformações globais torna obsoletos os costumes, a política e a ciência.
( Antonio Negri, A desmedida do mundo, Caderno Mais. Folha de São Paulo. 20 de setembro de 1998 )


O enunciado básico é de que o tempo das crianças e adolescentes hoje  é muito mais rápido do que o tempo dos adultos: refiro-me, evidentemente, ao tempo interno, tempo de elaboração das experiências, e não apenas ao  tempo cronológico, tempo do movimento dos astros, das estações, das colheitas ou dos relógios. Eles são fast kids mas nós não somos fast parents ... Sabemos que é difícil conceituar o tempo ou falar dele. Santo Agostinho, filósofo da Idade Média ( século V ) procurou dar conta dessa dificuldade  ao comentar que  ... não se pode vê-lo, nem sentir, nem escutar, nem cheirar e provar...

Maurício Knobel ( Knobel, 1974 ) considera  que o adolescente tem uma característica
muito especial em sua relação ao tempo. Ele escreve:

Desde o ponto de vista da conduta observável é possível dizer que o adolescente vive com uma certa desconexão temporal: converte o tempo presente e ativo como uma maneira de manejá-lo. No tocante à sua expressão de conduta o adolescente parece viver em processo primário com respeito ao temporal. As urgências são enormes e, às vezes, as postergações são aparentemente irracionais.

A afirmativa de Maurício Knobel nos remete ao fato de que é próprio desse momento evolutivo a utilização do tempo dentro de critérios do processo primário, tal como descrito por S. Freud, quando o tempo é vivido predominantemente em função das demandas internas, inconscientes, tempo interno, tempo de elaboração. Os adolescentes vivem , então, em função de suas transformações psíquicas, este afastamento do tempo cronológico . Esta situação é mais intensa quando a Sociedade sofre, como vimos, ela própria intensas e rápidas transformações em sua concepção de tempo . A globalização fez, através das comunicações rápidas e mais fáceis, um tempo fast ... Como exemplo posso lembrar que quando Abraão Lincon foi assassinado os americanos mandaram avisar os ingleses, através de um barco muito veloz, do acontecido: a viagem levou treze dias. Hoje qualquer acontecimento na Casa Branca estará em nossas casas em tempo real, ou à noite teremos todos os fatos nos noticiários de televisão e informações adicionais pela internet.

Sugiro que continuemos um pouco mais com Maurício Knobel ( Knobel, 1974 ) :

O transcorrer do tempo se vai fazendo mais objetivo ( conceitual )  sendo adquiridas noções de lapsos cronologicamente orientados. Por isso creio que se poderia falar de um tempo existencial, que seria um tempo em si, um tempo vivencial ou experiencial, e um tempo conceitual .

Como havíamos comentado antes o autor aborda a distinção que os gregos faziam de chronos, o tempo conceitual, e tempus, o tempo interno, da subjetividade do ser. Essa distinção entre esses dois tempos é essencial ao sentido de self ( ou ao going on being de Donald Winnicott ) e a organização da personalidade, realizações estreitamente ligadas ao processo adolescente. Nessa etapa a noção de tempo assume, basicamente, características corporais e ritmicas; tempo de dormir, tempo de comer, tempo de estudar, etc. Progressivamente, acompanhando o lento desenvolver do processo o adolescente vai adquirindo uma noção de tempo conceitualizada, que implica na discriminação entre passado-presente-futuro, interno e externo e a aceitação da perda do corpo infantil, da identidade infantil e dos pais da infância ( Aberastury, 1973; Outeiral, 1983 ). Surge, então, a capacidade de espera, da elaboração do presente e do estabelecimento de um projeto para o futuro a partir das memórias do passado. Como posso perceber, ajudado também pela observação clínica,, o processo adolescente no que respeita aos paradigmas vinculados ao tempo são complexos e difíceis de serem elaborados, situação que se problematiza ainda mais quando nos defrontamos ( além de uma velocidade maior ) com transformações e rupturas no conceito de temporalidade.

Penso que será interessante prosseguir em nossa discussão comentando a experiência com o tempo vivenciada pelos pais, assim como pelos adultos em geral, em contraste com a dos adolescentes. Nós, adultos, vivemos um tempo onde, por exemplo, o aprendizado da “ taboada “, as quatro operações básicas da matemática, era um processo demorado  que ocupava alguns anos da infância. Lembro dos professores dividirem as turmas de alunos e promoverem acirradas competições sobre a “ taboada “. Os adolescentes hoje, talvez, não saibam hoje nem o significado da palavra “ taboada “ e são capazes de realizar as operações matemáticas básicas e algumas complexas, instantaneamente, com uma pequena calculadora simples de operar , de custo baixo, com formato de cartão e movida por energia luminosa ... É difícil, com essa “ prótese “, explicar a importância do desenvolvimento do pensamento matemático ...

O campo da literatura também me permite comentar essa “ fratura “. A leitura de um livro contrasta muito com a utilização de um texto multimídia. O livro é uma longa seqüência de uns poucos sinais, não muito mais que duas dezenas, que revelam uma narrativa que convida, progressivamente, através do tempo, à utilização da imaginação: a leitura de Grabiela, cravo e canela de Jorge Amado permite que cada leitor, por exemplo, “ construa “ sua Gabriela, lentamente e de tal forma que a imaginação de quem lê não corresponde à Gabriela  nem do escritor e nem do ilustrador, Carybé. Há, na literatura, com seu convite à criação e à imaginação, uma interação escritor-leitor,  uma experiência compartida, de mutualidade, de um espaço estético a ser preenchido pelo leitor e que leva à uma  vivência ativa de quem se aventura nesta viagem que é “ ler “.. Nos meios de comunicação multimídia várias dessas funções estão preenchidas e são oferecidas  “ prontas “, para a geração delivery,  por um software e um hardware cada vez mais rápidos ( embora também rapidamente se tornem obsoletos ) , imediatamente, como é próprio de uma cultura “ fast food “, para serem consumidas por um “ espectador “  que assiste ... “ Assiste “ caracteriza bem a questão pois sugere algo passivo: ninguém “ assiste “ um livro, nós “ lemos “ um livro ! Meus filhos me mostraram, há pouco, um CDR-ROM com a obra do Jorge Amado: lá pelas tantas surge na tela uma prateleira com a lombada de cada um dos livros do autor e clicando o “ mouse “ sobre um deles surge uma síntese da obra ( “ não há tempo a perder ... “ )  e clicando sobre o nome de um dos personagens surge uma breve biografia e logo depois um trecho de um filme sobre o livro ou de uma telenovela e logo depois, um novo “ clique “, um fragmento de uma  música cantada por um popular cantor baiano sobre o texto e logo depois alguns críticos fazendo comentários de poucos minutos e logo depois um comentário sobre o pensamento político do escritor e logo depois ... enfim, tudo muito rápido e pronto, percebido por mim na forma com que tento transmitir ao leitor através da “ estrutura gramatical pós-moderna “. Não necessário imaginar e criar pois tudo está criado e imediatamente pronto para o “ input “.

A velocidade  “ das coisas “ é, então, muita distinta entre duas gerações, entre pais e filhos. O advento da cibernética possibilita ao adolescente uma experiência vital de extrema velocidade: operações matemáticas, contatos imediatos com todo o mundo através da internet, acesso a uma quantidade de  informações quase inesgotável, etc. É difícil para um adulto ( e imagine para os adolescentes ) pensar como nos anos sessenta funcionavam os Bancos sem os computadores ( e funcionavam ... ). Este contraste entre a referência velocidade/tempo entre a geração dos adultos e a dos adolescentes me leva a inferir que um dos vetores que nos levam a encontrar “ hoje “, mais do que “ ontem “, adolescentes “ atuadores “ se deve a esta quebra de paradigma: a tradicional, ou moderna, cadeia impulso-pensamento-ação cede lugar a um modelo novo caracterizado pela supressão do pensamento que demanda elaboração e, por conseguinte tempo e que se configura “ pós-modernamente “ como impulso-ação, baixa tolerância à frustração, dificuldades em postergar a realização dos desejos e busca de descarga imediata dos impulsos. Há um frenético não paro, se paro penso, se penso dói. B. Brecht escreveu, a propósito, que quando o homem atinge a verdade descobre também o sofrimento. Acredito, inclusive, que uma ampla faixa de nossa clínica é hoje consituida por pacientes com sintomatologia na área da conduta e na organização do pensamento: um número maior de Hamlets do que Édipos, no que muitos autores concordam ( Outeiral; 1993; Outeiral, 2000 )

Estas colocações são, evidentemente, apenas um esquema e na verdade um esquema insuficiente; mas todos concordamos em que, embora se constituam um elemento comum ao processo adolescente em qualquer período, na sociedade atual há uma exacerbação destes aspectos. Cybelle Weimberg chama estes adolescentes de “ geração delivery “ ...

2.      A cultura do descartável ou o permanente versus o efêmero

Encontramos dois paradigmas generacionais que se chocam: a modernidade busca a permanência e a pós-modernidade o descartável. Charles baudelaire descreveu em seus versos essa transição ao falar do amor do flâneur pela mulher fugidia, aquela que passa e que não será mais encontrada.

O descartável surge, pensam alguns, como F. Jameson, com o “ fordismo “ e com o advento da cibernética. Quando Henri Ford, em Detroit, na década de vinte, criou a linha de montagem para produzir em maior número e a custo mais baixo seu “ modelo T “, criou o problema de que não eram mais necessários tantos empregados ( imaginem hoje, em uma montadora de automóveis com a robótica ). A questão do desemprego ficou posta. O que fazer ? Criar bens de duração curta para que novos empregos sejam criados, particularmente no setor terceário  (  de serviços ).
Essa condição se revela quando, por exemplo, o currículo de algumas Escolas de Engenharia possuem uma disciplina sobre “ durabilidade de materiais “. Não apenas o estudo da fadiga dos componentes da asa de um avião, mas também determinar quanto tempo deverá “ durar “ certo material, que comporá um eletrodoméstico ou um automóvel, ou qualquer outro produto, para que após certo tempo esse material se deteriore e produza a necessidade do consumidor se “ descartar “ dele e adquirir um  novo produto. Os automóveis são feitos para durar muitos menos do que os construídos na década passada: a explicação é de que assim se manterá a cadeia produtiva  e, em conseqüência, os empregos ... numa lógica perversa um tanto perversa, sob o ponto de vista de um antigo, isto é, um homem moderno. Em nossas casas acontece o mesmo: as avós dos adolescentes de hoje não colocarão fora um copo de vidro, vazio, de geléia: é um objeto duradouro, com uma utilidade e poderá ser necessário em algum momento. Preservarão o copo seguindo um padrão de sua cultura. Os adolescentes, entretanto, convivem e  lidam com um sem-número de objetos descartáveis em seu cotidiano.

Considerando que entre algumas das características da pós-modernidade  encontramos a des-subjetivação e a des-historicização, as relações entre as pessoas também poderão ter características descartáveis; caricatamente, o sujeito será tomado como um gadget descartável .

3. A banalização

 Christopher Bollas escrevendo o capítulo Estado de mente fascista de seu livro Sendo um personagem  ( Bollas, 1992 ) desenvolve idéias sobre os vários estratagemas que o estado de  mente fascista, em seu aspecto individual ou social, utiliza, citando entre mecanismos a  “ banalização “ .A “ banalização “ é um mecanismo mental que se desenvolve insidiosamente e, dessa maneira ( de uma forma sutil e silenciosa ), modifica um paradigma. Novamente é útil recorrer à clínica, observando o quotidiano.

Quando ingressei na Faculdade de Medicina, ao dezessete anos, nunca havia tido contato real com um morto. Ao iniciarem as aulas recebi um cadáver com o qual eu deveria estar em contato, estudando a anatomia e fazendo dissecações, durante todo um ano nas aulas de anatomia . Eu o retirava da cuba de formol todas as manhãs e esta vivência me mobilizava intensamente: me perguntava se aquele homem havia tido uma mulher e filhos, como havia sido seu “ fado “ de acabar como meu objeto de estudo,  teria tido uma profissão ? Dávamos um nome, inclusive, ao cadáver. Ele era subjetivado e historicizado, algo ao estilo “ moderno “. Era comum não comermos carne porque o cadáver nos vinha à mente,   usávamos luvas preocupados com alguma possibilidade de infecção e uma máscara porque o formol irritava as mucosas. Nesse meio tempo íamos fazendo as dissecações e o cadáver, homem morto e possuidor de um nome e de uma história,  ao final do semestre era apenas “ peças anatômicas “: ossos, músculos, vísceras, etc ... Não era necessário mais usar luvas, pois o formol “ esterelizava “ e tampouco máscara porque nos acostumamos ao formol e fazíamos um intervalo para lanchar na própria sala de anatomia. Banalizada a situação havia apenas fragmentação, des-subjetivação e des-historicização, não um sujeito, mas uma coisa.

Acontece algo semelhante ao descrito antes com a violência e a sexualidade. Quando alguém e exposto à uma situação continuada de violência a tendência é que para conseguir sobreviver o indivíduo banalize a situação. . Bruno Bettelheim ( Bettelheim, 1973;1989 ), conhecido psicanalista que esteve preso durante a Segunda Guerra Mundial, nos campos de concentração nazistas de Dachau e Buchenwald, nos descreve com clareza a operação desse mecanismo – a banalização – cuja raiz está no mecanismo de negação, um dos mecanismos básicos da defesa do ego. Podemos imaginar o que ocorre na mente de crianças e adolescentes expostas, por exemplo, através da mídia a uma noção banalizada da violência, David Levisky ( Levisky,  1997  )  escreve, assim como Raquel Soifer  , sobre os efeitos da mídia na estruturação psíquica de indivíduos em desenvolvimento : uma criança ou um adolescente assistindo a vários assassinatos, diariamente, pela televisão modificará sua maneira de perceber a violência da mesma forma que modificará  sua erótica se constantemente exposto a uma sexualidade, em todas as suas formas e matizes, desde quando assiste a um filme,   uma novela ou  uma propaganda. O Ministério da Justiça divulgou uma pesquisa que constatou que as crianças brasileiras assistiam cerca de duas a três horas  de televisão por dia ...    

3.      A ordem da narrativa

Vivemos hoje na época dos objetos parciais, tijolos estilhaçados em fragmentos e resíduos.
Deleuze e Guatari ( Jameson, 1994 )

Historicizar sempre.
F. Jameson ( Jameson, 1994 )

A maneira que encontro para começar a apresentar essa questão é através da narrativa literária, O romance , expressão literária da modernidade, é introduzido na cultura ocidental através, principalmente, de W. Goethe ( 1749-1832 ). Georg Lukács ao comentar Os anos de formação de Wilhelm Meister , lembra que esta estrutura narrativa, que coloca o homem real  e seu desenvolvimento como elemento central,  domina  a literatura européia desde o Renanascimento e é o ponto nodal da literatura do Iluminismo, atinge seu ápice com W. Goethe.  O romance de formação, o buildingroman  , cujos exemplos clássicos poderão ser, para meu gosto,  o Os sofrimentos do jovem Wherter ( 1774 ) e o Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (  1793-1795 ) trazem, na pena de W. Goethe não apenas a consolidação de um modelo narrativo literário, mas a racional narrativa que pressupões “ um início, um meio e um fim “: a descrição do ambiente e a construção dos personagens, a trama e seu desenvolvimento e , finalmente,  a esperada terminação da história que cativa e leva o leitor até este momento.  Este modelo de início-meio-fim é alterado na pós-modernidade: é possível se iniciar pelo meio,  ir daí para o fim ( ou para o início ) e voltar ao meio. Há um andamento repleto de “ idas-e-vindas “, “ flashbacks “ ( voltas ao passado ), “ flash-forwards “ ( antecipações ), fragmentações, simbologias e metáforas, elementos segmentados, etc. O cinema nos dá exemplos importantes dessa nova narrativa com filmes como American graffiti, Star Wars, Chinatown, Body Heat, Raiders of the lost ark, Blade Riunner, Kiss of the spider woman  e tantos outros, como nos relata Steven Connor ( Connor, 1989 ) em seu artigo TV, vídeo e pós-modernos.

Esta estrutura narrativa abrange não só as produções culturais como também as narrativas de self, que cada indivíduo  apresenta como parte de sua personalidade ( Bollas, 1998; Outeiral, 2000 ).



5.      Uma nova erótica, o “ ficar “ na adolescência

Os adultos se defrontam hoje com uma erótica dos adolescentes diferente em muitos aspectos daquela que eles vivenciaram quando jovens, digamos nos anos sessenta ou setenta ... Reunindo os quatro itens anteriores –(1)  rapidez,(2) banalização, (3) elementos descartáveis e (4) alteração na ordem da narrativa -  é a questão do “ ficar “. Na adolescência inicial é comum “ ficar “ com vários parceiros numa mesma festa e quem os observa poderá ter a impressão de um “ grande enamoramento “ ( que durará, entretanto, apenas alguns minutos ) e, no dia seguinte, não será de bom tom cumprimentar o parceiro, devendo-se, inclusive, ignorá-lo e não fazer menção ao acontecido. É evidente que os pais dos adolescentes também vivenciaram estas experiências. A diferença é que “ romanticamente “ ( ou de uma forma moderna ) davam ao fato um nome “ elegante “, como  “ saída à francesa “ e, o mais importante, buscava-se não encontrar o parceiro, ou a parceira ,  nos dias seguintes por um certo sentimento de constrangimento ou culpa de ter criado uma expectativa no outro; tal consideração hoje  é praticamente inexistente.

Poderá ser interessante lembrar ( a modernidade busca historicizar, insisto ... ) que os pais dos adolescentes pertenceram ao que, prosaicamente, podemos chamar, seguindo a Woody Allen, “ a era do rádio “. As famílias se reuniam, a noite, e ouviam os capítulos diários de uma novela no rádio, sempre com alguma dramaticidade, e todos – em especial, é claro, os adolescentes -  iam construindo em seu imaginário os personagens: processo lento, progressivo. Hoje, em uma novela de televisão, som e imagem reunidos, os personagens são apresentados, já na vinheta de abertura, completamente despidos: somo privados do estímulo de “ desnudar “ erótica e criativamente, aos poucos, à medida que a intimidade vai se estabelecendo, progressivamente, descoberta após descoberta, o personagem que nos desperta o desejo, a sensualidade .... A situação atual cria uma erótica que, de certa forma, adquire  autonomia em relação ao desejo: ou seja, o objeto está “ pronto e oferecido “ anates mesmo de ser desejado. Não existe mais , então , “ este obscuro objeto do desejo “ tão ao gosto dos modernos...

A literatura, por exemplo,  incita uma participação ativa e progressiva na construção do objeto erótico: a leitura de um livro de Jorge Amado, por exemplo,  nos convida a criar, digamos, uma figura feminina, bastante diferente das ilustrações de Carybé, uma personagem só nossa. 

A banalização que envolve a sexualidade determina a necessidade da criação de estímulos mais intensos e diferentes: a simples imagem despida não é suficiente. É necessário, nos aproximando de uma cultura ao agrado do marques de Sade, ou gótica ( lembram-se de que estamos em Gotham City ), ou perversa como diriam alguns psicanalistas, criar fetiches, como a tiazinha  ou a feiticeira.

6.      A estética da pós-modernidade

A estética é, num sentido amplo,  uma  forma  , que através da beleza, busca cativar e interessar – por meio do prazer estético e. assim, transmitir um conteúdo a alguém . Um .pintor renascentista , por exemplo,  buscava através de novos elementos estéticos da pintura religiosa interessar o espectador e transmitir-lhe a idéia de Deus. Um professor busca através de seu plano de aula e por meio de sua maneira de expor  este plano transmitir conteúdos aos alunos: ele é  , em essência, um esteta.

A dificuldade é que a estética da modernidade e da pós-modernidade são diferentes. O professor, que utilizei como exemplo, é um esteta de modernidade e seus alunos estão vivenciando a estética da pós-modernidade ; cria-se um gap entre uns e outros ... mas é necessário explicitar mais. Eu diria que a estética do adulto pode ser referida com o filme Casablanca . O filme, em síntese, tem o seu ápice na cena final do aeroporto quando o casal se despede e a mocinha volta para Paris e o mocinho permanece na África. Ela o ama, mas volta para seu marido em Paris pois eles tem um “ história de vida “ e um “ respeito mútuo “, além dela considerá-lo um homem de valor, íntegro e que luta ao lado do “ bem “, isto é, na resistência francesa contra os nazistas . Os “ modernos “  choram com o filme emocionados pelos  “ paradigmas e os valores “ que conseguem, através da razão sobrepujar a paixão. Os adolescentes não se emocionam da mesma forma pelo filme: para eles é absurdo que ela volte a Paris se não ama o marido e deveria, é óbvio,  ficar em Casablanca com seu “ verdadeiro “ amor. A estética dos adolescentes, impregnados pela estética da pós-modernidade, é o vídeo-clip: breve, curto, fragmentado, desfocado, às vezes, sem início-meio-fim, não conta, em termos da modernidade, uma história verdadeira. Mas tem uma estética e transmite um conteúdo . Levando estas questões para a escola,  penso que há uma fratura entre a fala da escola – moderna , tipo Casablanca – e a escuta dos alunos – pós-modernos, tipo  vídeo-clip.

Posso também abrir a questão, já referida por muitos autores , da estética do corpo na cultura contemporânea, particularmente no tocante aos jovens. Arriscaria a dizer que os transtornos alimentares ( anorexia nervosa, obesidade e  bulimia ) poderão fazer parte do que Henri-Pierre Jeudy ( Jeudy, 2000 ) chamou de doenças pós-modernas, ao referir-se ao pânico e a fobia social. Na sociedade contemporânea a estética pós-moderna do corpo, profundamente narcísica,  cria um sujeito onde a redução da subjetividade e a ênfase na materialidade transforma o homem/sujeito em homem/objeto. Não havia visto, na clínica,  tantos destes transtornos de alimentação como na última década. Jacques Lacan, referido por alguns como um psicanalista da pós-modernidade ( Appignanesi & Garrat, 1995 ), no seu Seminário XVII, trata deste homem, na verdade um objeto-sintoma, quase um gadget ( objetos tecnológicos da ciência contemporânea ) , através de seu conceito de letosas    ( neologismo criado por ele a partir dos termos gregos “ alétheia “ e “ ousia “, para referir-se, numa simplificação que faço,  aos  “ seres-objetos da tecnologia “ ).


7. A ética

This above all: to thine own self be true
And it must follow, as the night the day
Thou canst not then be false to any man
Shakespeare, Hamlet ( Apud Winnicott, 1994 )

Todos nós sabemos o que é ética, mas se somos solicitados a conceituá-la a tarefa não é tão simples. Fábio Herrmann ( Herrmann, 1995; 2000 ) considera que há uma relação clássica entre ética e ser verdadeiro, referindo-se ao compromisso do indivíduo com ele mesmo e com os outros. Ele escreve

Que significa ética ? No começo do livro II da Ética a Nicômano  Aristóteles ensina: “ A virtude moral é adquirida em virtude do hábito, donde ter-se formado seu nome ( étike ) por uma pequena modificação da palavra étos ( hábito ) “... A ética vale como uma forma de  reflexão sobre nós  mesmos muito mais como fonte de conclusões normativas. Ético é pensar.

Como psicanalista, tenho um vértice de observação em relação à ética e é a partir deste ponto que quero fazer algumas considerações. Temos, então, algumas sendas a percorrer: (1) Fábio Herrmann comenta que ético é pensar; (2) Jacques Lacan, por sua vez, lança o aforisma de que  ético é não ser o desejo do outro ; (3) Humberto Eco expressa a opinião de que  a ética surge quando o outro entra em cena .

Estas tres idéias me estimulam a seguir adiante, buscando especificar mais. Vejamos ...

A ética se constitui na relação do indivíduo com seu ambiente, através de mecanismos de identificação: inicialmente com os  pais, a família, e, posteriormente, com os modelos identificatórios que a Sociedade oportuniza às suas crianças e adolescentes: pais de amigos, professores, artistas, desportistas, políticos, etc. Que padrões  constituem estes modelos para identificação e, por conseguinte, para a constituição da estrutura ética e moral da personalidade das  crianças e adolescentes que a  família e a Sociedade oferece ?
.
Sigmund Freud descreveu o super-ego como a instância psíquica que, através das identificações, possibilita a internalização das leis e normas de conduta, da ética e da moral, de uma determinada cultura. Nesse processo de constituição do super-ego encontramos dois momentos anteriores, o ego-ideal – predominantemente narcísico, incapaz de reconhecer o outro como algo externo a si mesmo, caracterizado também pela concretitude e onde a ação predomina sobre o pensamento – e o ideal de ego – simbólico, menos narcísico e reconhecendo o outro como externo. A passagem de um ao outro é possibilitada por identificações boas e adequadas. Quando essas identificações – a cultura do mundo adulto – falham em seu papel teremos dificuldades na estruturação do super-ego . Meu enunciado é de que na sociedade atual não são oferecidas identificações suficientemente boas às crianças e adolescentes. Este enunciado, se verdadeiro, significa o risco de termos uma geração de adolescentes presa ao ego-ideal – excessivamente narcísica, atuadora, com dificuldades no reconhecimento do outro como um sujeito externo e com dificuldades na simbolização e. consequentemente, com o pensamaento. Ao clássico aforisma de Sigmund Freud – onde há id deve haver ego – eu colocaria um outro: onde há ego-ideal deveria haver ideal de ego ...

Devemos pensar nos modelos e  identificações que a sociedade contemporânea oferece: a família em rápida mudança de valores e perplexa, por um lado, e a sociedade, de outro, revelando e transmitindo -  através da mídia, da política, etc   - uma cultura, em alguns aspectos, perversa.

Sigamos adiante, abrindo nosso leque.

Adultescência , um novo termo, foi criado e, inclusive,  incluido no conhecido dicionário New Oxford Dictionary  ( Cadermo Mais. Folha de São Paulo. 20 de setembro de 1998 ), mistura, em inglês. das palavras “ adult “ ( adulto ) e “ adolescent “ ( adolescente ) .

Adultescente – pessoa imbuída de cultura jovem, mas com idade suficiente para não o ser. Geraalmente entre os 35 e 45 anos, os adultescentes não conseguem aceitar o fato de estarem deixando de ser jovens  ( David Rowan, Um glossário para os anos 90 ).

Como ficam os adolescentes tendo de lidar com modelos identificatórios inadequados e/ou com adultos que querem ser adolescentes ? Onde encontrar modelos adultos suficientemente bons ? A pergunta, sem resposta, é um convite para pensarmos juntos.




8. Os espaços da modernidade e o espaço virtual da pós-modernidade

Os modernos vivenciaram dois espaços: o espaço da realidade externa e o espaço interno, das fantasias, das emoções e dos sonhos. Muitos filósofos da modernidade estudaram o quanto a realidade externa é possível de ser “ objetivamente “ percebida sem a influência de categorias do espaço interno. Os adolescentes, entretanto, convivem com um terceiro espaço: o espaço virtual. Este é um novo espaço, com características especiais, surgido há pouco mais de cinqüenta anos, muito recente portanto: ele é capaz, dizem, de interagir. A .pós-modernidade tem, inclusive, muito a ver com a relação e com o próprio início deste período do  cyberespaço  ( Levy,         ).

Vejamos um exemplo da clínica do quotidiano.  Once upon a time ... imaginemos uma família de classe média, um casal e três filhos. O pai compra um computador e instala a internet, para que os filhos façam suas pesquisas para os trabalhos escolares. O pai trabalha o dia todo, os filhos estudam pela manhã e pela tarde e a mulher é professora pela manhã e á tarde tem os afazeres  domésticos ... uma vida comum e, até certo ponto, monótona e sem emoções ... Um dia a mulher “ entra “ na internet e num determinado  “ chat “  encontra um homem “ do outro lado do mundo . Começam a conversar; era um homem “ gentil que dizia coisas muito interessantes “  e a que a “ compreendia “. No dia de seu aniversário, que o marido e os filhos “ quase “ esqueceram, o homem mandou-lhe um cartão de “ feliz aniversário, musicado e com uma coração vermelho palpitante “ ... ela se sentiu emocionada como há muitos anos não se sentia ... Começou, então, uma conversa mais sensual, mais erótica e, por fim, um diálogo que, soube depois, faria inveja a Antonio Bocage. A mulher,  antiga, pois era apenas moderna e não pós-moderna, apertava uma tecla no computador – delete – e acreditava que tudo ficava apagado. Num domingo à tarde, toda a família na sala, onde ficava a televisão e o computador, e o marido, que entendia um pouco mais que ela desta fascinante máquina, foi procurar alguns E-mails na lixeira do computador e, atônito, “ puxou todas as conversas “ da espôsa e do homem virtual. Ficou apavorado, pois convivia com a espôsa há mais de vinte anos e nunca imaginara que ela quisesse ouvir tais coisas e, muito menos, escrever o que ele lia ... os filhos colocaram-se contra a mãe, que de Mãe Santa, passou a mulher “ adúltera “ ... e o mais impressionante , a própria mulher não reconhecia o que lia como algo “ seu “, que tudo aquilo fosse uma expressão de seu self  !

 O que aconteceu ...

A modernidade, como escrevi antes, enfatizou a existência de dois espaços ( sob, por exemplo, a influência do romantismo, pois estamos falando de uma história de amor, quando esta corrente literária estabelecida por W. Goethe, colocou o homem e suas emoções no centro do universo ): (1) o espaço interno, das emoções e dos desejos, das pulsões, da alma e do mundo dos sonhos, topos psiquico tão nosso conhecido, e (2) o espaço externo, dos acontecimentos reais.. A modernidade coloca as coisas nos seus devidos lugares, no lugar certo, cada coisa em seu lugar, buscando a certeza e seguindo a Descartes,  kant e a  Comte ... A pós-modernidade criou um novo espaço, o cyberespaço, do qual nos fala, entre outros tantos, Pierre Levy e Jean Baudrillard: o espaço virtual ... o espaço desta nova máquina, que é interativa e que denominamos computador. Desconstruindo ( ou dando foco ) à história clínica dessa esposa e de sua família ... essa mulher, cuja narrativa de self, como escreve Ch. Bollas, se relaciona ao “ moderno “, de certa maneira ao antigo e ao passado, só reconhecia dois espaços, o interno e o externo, e o espaço virtual, espaço da cultura contemporânea, espaço hight-tec, lhe é estranho e “ desconstrói sua estrutura de self.

Pierre Levy ( Levy, 1995 ), pensador ligado à pós-modernidade e ao conceito de cyberespaço,  escreve a propósito:

A força e a velocidade da virtualização contemporânea são tão grandes que exilam as pessoas dos seus próprios saberes, expulsam-nas de sua identidade.

Este autor, em seu livro Qu´est-ce que le virtuel ? ( Levy, 1995 ) , partindo de algumas idéias de Gilles Deleuze, afirma que o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual e desenvolve a tese de o conceito de “ virtual “ se opõe ao conceito de dasein de M. Heidegger do ser-um-ser-humano ou, literalmente, ser-aí. O virtual se relaciona ao ser-lá, a “ não-presença “, diferente do ser-aí .

Vejamos algumas outras idéias deste autor, buscando compreender melhor os paradigmas que constituem o conceito de virtual. e o choque com os paradigmas da modernidade.

Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam não presentes, se desterritorializam ... a virtualização submete a narrativa clássica a uma prova rude: unidade de tempo sem unidade de lugar.

O cyberespaço intervém também no conceito de identidade, o que nos é dado pelo conceito de “ hipercorpo “.

A virtualização do corpo incita a viagens e a todas as trocas. Os transplantes criam uma grande circulação de órgãos entre corpos humanos. De um indivíduo ao outro e também entre os mortos e os vivos ... cada corpo torna-se parte integrante de um imenso hipercorpo híbrido e mundializado ...

Jean Baudrillard ( Baudrillard, 1997 ) é outro autor que nos ajuda nesta collage.

As máquinas só produzem maquinas. Isto é cada vez mais verdadeiro na medida do aperfeiçoamento das tecnologias virtuais. Num nível maquinal, de imersão na maquinaria, não há mais distinção homem-máquina: a máquina se localiza nos dois lados da interface. Talvez não sejamos mais que espaços pertencentes à ela – o homem transformado em realidade virtual da máquina, seu operador, o que corresponde à essência da tela. Há um para além do espelho, mas não para além da tel. As dimensões do próprio tempo confundem-se no tempo real. E a característica de todo e qualquer espaço virtual sendo de estar aí, vazio e logo suscetível de ser preenchido com qualquer coisa, resta entrar, em tempo real, em interação com o “ vazio “ ...

Articulando estas idéias poderemos ser levados a pensar que quando alguém “ brinca “ com um jogo   eletrônico no computador não está verdadeiramente “ brincando “ , mas sim “ sendo brincado pela máquina “.


9. O predomínio do externo, da forma e da parte sobre  o interno,  o conteúdo e o todo

A modernidade sempre buscou a valorização do “ conteúdo “ sobre a forma e o externo ( a aparência física  ) e do conjunto sobre as partes ( subordinação das pessoas ao estado nacional ), buscando no campo do indivíduo a “ pessoa total “. A pós-modernidade , em oposição, valoriza a aparência, a superfície, e a fragmentação. O número de cirurgias plásticas e os transtornos de alimentação nos levam a pensar como a cultura pós-moderna , marcisista, incide sobre os adolescentes.

10. O mito do herói

Otto Rank ( Rank, 1961 ) escreveu sobre o mito do nascimento do herói, onde a partir de vários relatos míticos, da literatura e das religiões, encontra elementos comuns na “ vida “ dos heróis e faz um conjunto de observações psicanalíticas sobre o tema.O herói da modernidade, espelhado na cultura grega antiga, tem como uma referência, por exemplo,  Don Quixote de la Mancha de Miquel de Cervantes, romance de cavalaria do quinhentos. Don Quixote enlouquece e dedica a sua vida à uma causa, o amor. Os heróis modernos tem sempre uma causa “ justa, solidária e coletiva “: um amor, uma religião, uma ideologia, etc, pela qual dedicam ou sacrificam sua vida . O herói pós-moderno, em oposição, tem uma causa estritamente pessoal, da qual deve obter o máximo de proveito, não solidária , egoística; nunca deve se sacrificar ou oferecer a vida por ela. Deve, isto sim, desfrutar das benesses ! O novo herói, o herói pós-moderno, é um super-heroi narcísico, maníaco e predador.

11. O conhecimento da horizontalidade versus o conhecimento vertical

A passagem da Idade Média, com sua visão teológica do mundo e suas explicações mágicas e místicas para os fatos do mundo, deu lugar na Idade Moderna à busca da explicação científica, da raíz do conhecimento em determinada área, do genoma para compreender melhor o homem, é próprio da modernidade: a busca da profundidade confere um estatuto baseado na razão e na ciência.  A pós-modernidade, entretanto, busca o conhecimento horizontal: um adolescente que assiste a um vídeo de ciências naturais sobre os animais da savana africana poderá ser  capaz de realizar uma “ conferência “ sobre o tema: ele fala do clima, das espécies que vivem neste habitat e de seus hábitos alimentares e reprodutivos. Mas ele não pesquisou, nunca esteve lá, não leu nada sobre o assunto, assistiu imagens e poucas explicações, que ele simplesmente reproduz com habilidade. O resumo, a síntese, é o que é buscado, principalmente através de imagens, elemento fundamental desta condição .pós-moderna.

12. O falso versus o verdadeiro. A pós-modernidade como a cultura do simulacro.

A invenção da fotografia no século XIX possibilitou a reprodução bastante perfeita da realidade, liberando o artista para se aventurar  mais além, chegando ao impressionismo e às outras formas modernas de representação.  A utilização dos negativos fotográficos  propiciou uma série de reproduções e, hoje, com uma máquina xerox teremos um grande número de cópias, bastante reais.

Um dos representantes mais significativo deste momento é Andy Warhol ( 1930-87 ). Tornou-se famoso por suas imagens em série de produtos para consumo, pessoas transformadas em objetos ( Marylin Monroe, Mao-Tse-Tung, etc. ) ou  mesmo simples objetos como latas de sopa Campbell. Freqüentando os ambientes mais variados de New York, munido de uma máquina Polaroid ( fotos instantâneas ) clicava imagens e as reproduzia seriadas em silk-screen ou em tinta acrílica, trabalho mais de seus assistentes de que dele mesmo, “ produzindo “  ( seu studio se chamava The factory, a fábrica ) quadros  disputados por museus e colecionadores. Este pós-moderno personagem, algo gótico, com sua peruca platinada, óculos escuros e uma pálida maquiagem, através de suas obras transmitia a idéia da perda da identidade na sociedade industrial ( refiro-me à segunda revolução industrial ). Ele escreveu frases como : pinto isso porque queria ser uma máquina ... Acho que seria sensacional se todo o mundo fosse idêntico... Quero que o mundo pense da mesma maneira, como uma máquina... Se querem conhecer Andy Warhol olhem para a superfície de meus quadros, dos meus filmes e isso sou eu. Não há nada por trás disso . Fez, também,  mais de  sessenta filmes que suplantaram as fronteiras possíveis da banalidade: um de seus filmes, mudo, intitulado Sleep, tem seis horas de duração, registrando apenas um homem dormindo. Sobre esse filme ele comentou que gosto de coisas chatas... Atingido por um tiro desferido por um dos figurantes de seus filmes, na Unidade de Tratamento Intensivo , buscava se informar das notícias publicadas na mídia sobre seu estado clínico e tratava de fotografar seus ferimentos . Sua arte entretanto não pode ser restrita a uma análise que a julgue repetitiva, banalizada e despersonalizada. Julian Schnabel, pintor contemporâneo, talvez exagerando, registrou com alguma pertinência que Andy mostrou o horror do nosso tempo tanto quanto Goya o fez em sua época. Ele é um personagem exemplo da pós-modernidade, da cultura do simulacro.

Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, desenvolveu o conceito de verdadeiro e falso self, definindo o falso self como uma defesa altamente organizada, que frente a um ambiente que não exerce adequadamente suas funções ( maternas) busca proteger o verdadeiro self do aniquilamento. Júlio de Mello Filho ( Mello, 1997 ) escreveu a propósito deste falso self,  adaptativo , um artigo intitulado Vivendo num país de falsos selves.


13. A importância da história para a modernidade e o fim da história na pós-modernidade

A modernidade tratou de historicizar o homem e sua cultura, na busca de estabelecer sua identidade. As grandes pesquisas arqueológicas e de palenteologia, na busca da contrução da história, foram um frisson no século XIX. S. Freud, como sabemos, pensador exemplar da modernidade, utilizou freqüentemente a metáfora arqueológica para descrever sua criação, a psicanálise, e tinha uma grande coleção de objetos antigos.

A pós-modernidade, inversamente, “ decretou “ o fim da história . O historiador americano Francis Fukuyama, em seu livro The end of history and the last man, lançado em 1992, num tom evangélico profetizou o fim da história como uma New Gospel ( do inglês antigo, godspel,  good news ) do fim do milenio. Numa mixórdia, que foi prontamente aceita por alguns pós-modernos, F. Fukuyama liga seu tom evangélico da new gospel ao pensamento de K. Marx e de G. F. Hegel e , num exercício que mais lembra uma impostura intelectual  ( Sokal, 1955 ),  “ celebra “ o triunfo de um novo capitalismo neoliberal e o final da história. Este autor, funcionário do departamento de estado Norteamericano,  escreve que nunca mais aconterá grandes transformações históricas: o capitalismo em suas novas formas é a sociedade final. Devemos abandonar as utopias  pois o admirável mundo novo aí está.: devemos esquecer as lutas políticas, os debates filosóficos e as realizaações artísticas de vanguarda

14. A modernidade e suas utopias e o fim das utopias na pós-modernidade

A modernidade acredita, como os jovens de 1968, que quando muitos sonham juntos os sonhos se tornam realidade. É a necessidade das utopias, algo que mesmo não sendo factível em sua totalidade move o gênero humano em direção ao progresso, ao respeito pelo humano, sua vida e seus sonhos.O herói, este aspecto utópico de cada um de nós, e que a literatura, e mesmo a vida, nos revelam é essencial. A utopia leva o humano mais ao alto.

A pós-modernidade, com o fim-da-história e seus heróis pós-modernos, expulsa a utopia. Não há o que desejar senão consumir o que está produzido, simulacros, simulações do real, ser feliz é ter uma calça lee velha e desbotada … O último herói da modernidade para a geração de 68, Ernesto Guevara, não se pretende que seja  um ideal utópico para os jovens, mas uma estampa numa t-shirt da Forum de Tufik Dusek.

15. No lugar do simbólico o mundo de imagens da pós-modernidade

Jacques Lacan desenvolveu seus conceitos sobre o desenvolvimento humano enfatizando o estagio do espelho. Com seus estudos ele revelou a importância da passagem do imáginário, mundo psíquico dependente da imagem , para o simbólico. A pós-modernidade é um mundo preso à imagem, onde a visualização e a concretude resultante são fundamentais. Nada existe senão como imagem: uma pessoa é a sua imagem visual, não simbólica. O imáginário, é um momento predominantemente narcísico, onde, como no mito, o indivíduo esta preso, profundamente enamorado, de sua própria imagem e não reconhece o Outro. Há falha na capacidade simbólica, com tudo o que resulta disso. O mesmo Jacques Lacan, psicanalista ligado aos grupos de vanguarda, como os surrealistas e, de certa forma, aos pensadores da pós-modernidade, vincula esta perda da função simbólica ao declínio do pai e da função paterna , pois é o pai o sustentador do simbólico.

16. Globalização

Albert Dunlap definiu da seguinte forma para o Times Book a posição das grandes corporações econômicas, as “ multinacionais “: ” A companhia pertence às pessoas que nela investem – não aos seus empregados, fornecedores ou à localidade em que se situa “.

A geopolítica e a noção de Nação e Estado, práticas da modernidade, foram subistuídas pela geoeconômia e pela globalização, determinada principalmente pelas grandes corporações supranacionais., símbolos da pós-modernidade. A velocidade e a facilidade das comunicações e o cyberespaço, progresso fantástico e inevitável, fica a serviço do capital e não do social, onde ao mesmo tempo que aproxima exclui do progresso social grandes parcelas populacionais ( Bauman, Z., 1998 ).

A globalização não deve terminar com as diferenças, preservando as identidades. O avanço tecnológico que possui é fundamental para o progresso da cultura humana  A internet, por exemplo, pela facilidade de comunicação que oferece e pelas informações que disponibiliza, inevitavelmente se colocará a serviço do progresso social e humano.

17. O fim das certezas

A pós-modernidade é definida, por vários autores ( Prigogine, 1996 ) como o período do fim das certezas . A física newtoniana, por exemplo, marco da modernidade, é confrontada pela teoria quântica e suas novas formulações e pelas teorias do caos. O que temos hoje é uma descrição que se articula, com um instável equilíbrio, entre duas representações alienantes, a de um mundo submetido ao determinismo ( matemático ) e a de um mundo  arbitrário submetido apenas ao acaso. Os adolescentes estão neste mundo,  que os convida a ser uma metamorfose ambulante.

Terry Eagleton, em seu livro As ilusões do pós-modernismo ( Eagleton,  1996 ),  parte de seis tópicos – primórdios, ambivalências, histórias, sujeitos, falácias e contradições – mostra como a condição pós-moderna “ conseguiu  derrubar “ certezas supostamente inabaláveis.  Ele escreve:

A cultura pós-moderna produziu em sua breve existência um conjunto de obras ricas, ousadas e divertidas, em todos os campos da arte. Ela também gerou um excesso de material kitsch execrável. Derrubou um bom número de certezas complacentes, contaminou purezas protegidas com desvelo e trasngrediu normas opressoras. Tal maneira de ver baseia-se em circunstâncias concretas: emerge da mudança histórica ocorrida no Ocidente rumo uma nova forma de capitalismo – o mundo efêmro e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da industria cultural, no qual as industrias de serviço, finanças e informações triunfam sobre a produção tradicional, e a política de classes cede terreno a uma série difusa de “ políticas de identidade “, Pós-modernismo é., portanto, um estilo de cultura que obscurece as fronteiras entre cultura “ elitista “ e cultura “ popular “, bem como entre arte e experiência cotidiana.



18. O adolescente e a ocupação dos espaços

A prova primeira da existência é ocupar o espaço
Le Corbusier, arquiteto


A PM lá em cima como se estivesse numa torre tomando conta de um campo de concentração, os traficantes alí ao lado do orelhão, armados, os aviões passando tão baixo e os trens tão perto que os ruídos se confundem, o funk fazendo a trilha sonora – tudo isso lembra uma montagem pós-moderna feita com pedaços incongruentes de vários mundos e épocas.
Zuenir Ventura,  Cidade Partida ( Rio de Janeiro ), 1994


A ocupação do espaço, doméstico ou público,  pelos adolescentes é uma das formas que eles utilizam para lidar com as transformações físicas, psicológicas e sociais e as fantasias e ansiedades que esse processo acarreta. Sabemos que a identidade se articula em três pontos – espacial, temporal e social – e a relação destas mudanças, especialmente as corporais, com a ocupação dos espaços é bem evidente.

Arminda Aberastury ( Aberastury, 1971 ) nos auxilia, nessa linha especulativa, quando escreve em seu livro El niño y sus dibujos :

Reproduzir o próprio corpo, o dos pais e após tratar de desenhar casas é a cronologia do desenho no desenvolvimento normal. Como a casa é um símbolo do esquema corporal se compreende que seja o primeiro objeto inanimado que aparece nos desenhos.

A arrumação do quarto de  um adolescente ( ou a forma com que “ recheia “ sua mochila escolar ) nos dá uma dimensão, bastante aproximada de seu mundo interno ...

A ocupação do espaço público ( escola, bares, shopping, praças, etc. ) também é significativa. Eles: necessitam, por exemplo “ migrar “ de um espaço para outro a cada intervalo de tempo, revelando o que Françoise Dolto chama o “ Complexo de Lagosta “, se referindo a este animal que ao transformar periódicamente o corpo perde a “ casca “ que o envolve ( Dolto, 1989 ). Durante alguns meses todos freqüentam um mesmo local e depois “ migram “ para outro ... é como o corpo infantil que tem de ser abandonado ( ansiedade depressiva e confusional frente a perda do conhecido ) e o outro corpo, o adulto, encontrado e habitado ( ansiedade paranóide frente ao desconhecido ).

Mats Lieberg ( Lieberg, 1994 ) em um estudo da Universidade de Manchester sobre a ocupação do espaço público pelos teenagers, realiza uma pesquisa que nos mostra a “ migração “ através da cidade como correlata com as transformações da identidade. Aliás, Mário Quintana, o poeta maior dos gaúchos, significativamente, correlacionando a geografia com a anatomia escreve em seus versos ...

Olho o mapa da cidade como quem examinasse a anatomia de um corpo
É que nem fosse meu corpo !

O arquiteto Norberg-Schulz, em seu livro  Novos caminhos da arquitetura: existência, espaço e arquitetura ( Norberg-Schulz, 1975 ), descreve a relação espaço-persona da seguinte maneira:

Lugares, caminhos e regiões são os esquemas básicos de orientação, isto é, os elementos constituintes do espaço existencial. Quando se combinam o espaço se converte em uma dimensão real da existência humana... somente se define interior e exterior quando se pode dizer que se “ habita “ ou se “ reside “... em função dessa conexão as experiências e as memórias do homem se localizam e o “ interior “ do espaço vem a ser  uma expressão do “ interior “ da personalidade. A “ identidade “ está, pois, íntimamente associada com a experiência de lugar, especialmente nos anos de formação da personalidade.

Estes comentários foram feitos por um arquiteto, que embora não seja um psicanalista, compreende perfeitamente as questões envolvidas na relação espaço arquitetônico e o espaço existencial.

Onde habita, hoje, o adolescente ? Provocativamente respondo: em Gotham city !

 Gotham City, cidade de Batman e Robin,  New York ou Los Angeles, lá e aquí,  é a apresentação conceitual e estética do espaço pós-moderno. A representação seqüencial dos estilos – clássico, gótico e moderno – é mixada e surge a figurabilidade pós-moderna: Gotham City é esta collage. Lembremos que gótico foi um termo cunhado pelos teóricos renacentistas italianos para caracterizar uma estética vinculada ao estilo bárbaro germanico  que se impunha frente a antica e buona maniera moderna – o velho e bom estilo moderno (  Appignanesi & Garrat, 1995 ) ... O gótico também evoca um tipo de romance noir onde o Marques de Sade fez desfilar seus personagens e suas vigorosas experiências. Reparando em alguns prédios bastante conhecidos de New York veremos o gótico e também o clássico e o moderno numa clara composição pós-moderna: aliás foi esta cidade que inspirou o autor de Gotham City.

É Los Angeles, entretanto, para vários teóricos, a cidade exemplo do espaço pós-moderno. J. Baudrillard, em seu livro America ( Baudrillard, 1988 ), comenta que LA está livre de toda a profundidade ... um hiperespaço exterior, sem origem e sem pontos de referência. Para este autor LA é uma visão do humano pós-moderno patético. J. Baudrillart e tout court consideram que o pós-moderno se separa do moderno, entre outros aspectos, quando a produção de demanda – dos consumidores – se torna central: a produção de necessidades e desejos, a mobilização do desejo e da fantasia, da política de distração ( Lyon, 1998 ). Há um olhar diferente na cidade pós-moderna: é o olhar do turista ou do zapping. Não mais o olhar dos flâneurs, olhares de passantes sem pressa, nos boulevares de Paris, típico olhar moderno.

David Lyon  ( Lyon, 1998 ) escreve LA:

Vários comentadores consideram Los Angeles a primeira cidade realmente pós-moderna do mundo. A beira do mar, a grande metrópole comporta um número elevado de profissões de alta tecnologia, serviços a preços baixos e trabalhos de manufatura. Mas ela passou por uma desindustrialização e uma reconstituição tão rápidas ( seletivas ) que Edward Soja a chamou de “ a janela paradigmática pela qual se pode ver a última metade do século vinte “. Todavia é difícil focalizar esse fluxo urbano fragmentário, constantemente em movimento, que está em toda a parte, global.

Os habitantes de LA estão entre o local e o global, mini-cidades étnicas, convivendo um grande avanço tecnológico com favelas imundas e arredores meio-modernos. Bairros chamados Veneza, Manhattan Beach, Ontário, Westminster, etc convivem simultâneamente, interconectadas. Uma babel de línguas, onde yuppies e imigrantes ilegais se diferenciam e se confundem. David Lyon ( Lyon, 1998 ) comenta que nestes espaços  o projeto do eu se traduz num projeto de posses de bens desejados e na busca de estilos de vida artificialmente modelados ... O consumismo não conhece limites ... uma vez estabelecida ,uma cultura do consumo dessa espécie é não-discriminadora e tudo se transforma num íten de consumo, até o significado, a verdade e o conhecimento... A imagem, o estilo e o desenho do produto transpôem as metanarrativas modernas e assumem a tarefa de conferir significado. “ As coisas se fragmentam disse W.B. Yeats, prescientemente, “ o centro não consegue se sustentar “. Assim, a falta de centro, simbólica de LA, se torna uma metáfora para a cultura de consumo pós-moderna em geral: tudo está fragmentado, heterogêneo, disperso, plural – sujeito às escolhas do consumidor... Valores e crenças perdem qualquer  sentido de coerência, sem mencionar o de continuidade, no mundo de escolha do consumidor; de mídia múltipla e de pós-modernidade globalizada.

Não pretendo privar o leitor de buscar ele próprio  o esclarecedor livro de David Lyon e por isso abrevio a citação. É a distopia, embora não tenhamos chegado ainda em 2019, de Blade Runner   e seus andróides. Reconhecemos este lugar: Gotham City é aquí !



-        VIII –
                 
Penso que seria interessante fazer alguns breves comentários sobre uma escola que possa enfrentar estes desafios, tendo a certeza de estar fazendo comentários nada originais e que, certamente, alguém fez melhor antes. Mas que escola seria esta ? Aquela que preservando valores essenciais da modernidade esteja aberta ao progresso e ao novo.  Minhas observações se derivam mais de uma prática com crianças, adolescentes e escolas do que de idéias que eu tenha tido a oportunidade de desenvolver uma teorização sobre elas. Obtenho respaldo, entretanto, com um importante pensador que escreveu, no século IXX, que a prática é o critério da verdade.

Julgo que três pontos seriam essenciais:   olhar a criança com (1)  um novo olhar e educar para  (2) brincar e (3) pensar.

                                  Olhar a criança com um novo olhar

Enfatizo com este destaque a importância de oferecer à criança este novo olhar, que significa propiciar à ela subjetivação  e historicização. Compreender as diferenças entre ensinar ( colocar signos para dentro ) e educar ( criar condições ambientais para que a criança e o adolescente desenvolva, a seu ritmo, seu potencial ), recusando o papel de impor um fordismo na escola, uma linha de montagem onde os gadgets crianças são produzidos para o gozo de uma sociedade consumista. Faço referência a um novo olhar que confira à criança um narcisismo de vida , como explica André Green, distante do narcisismo de morte ao qual ela está condenada por uma sociedade que estabelece com seus filhos uma relação perversa, do abandono à violência, da exploração sexual à transformação em seres para o consumo rápido.

                                           Educar para brincar

Minha hipótese é que a escola poderá ajudar a criança e o adolescente a descobrir o brincar, experiência perdida em um mundo de concreto, de objetos prontos para o consumo e um uso não criativo, recuperando a perda da tradição do brincar e de criar o brinquedo. As grandes corporações levam seus gerentes com MBA para seminários onde eles são ensinados a brincar: num reconhecimento explícito da importância do brincar para o desenvolvimento da criatividade e de que o brincar está esquecido .

                                           Educar para pensar

Em muitos momentos, ao longo do texto, referi como o pensar está problematizado na condição pós-moderna. A escola tem a função de resgatar este aspecto fundamental do desenvolvimento da criança e do adolescente.

Esta nova escola terá, desde meu ponto de vista como médico, uma função fundamental de promoção da saúde e prevenção da doença. Seu currículo não se dirigirá a penas a matérias dissociadas entre si, às vezes sem nenhum entrelaçamento, um currículo fragmentado. Voltada no sentido de fornecer elementos e um  um sentido prático para a vida Será também uma escola para pais, incluindo a família nos seus objetivos principais. Enfim, uma escola para a vida, onde o progresso tecnológico estará serviço da pessoa. 

                                       The last but not the least

A escola deve se constituir também em uma “ escola para os pais “, onde estes possam discutir todas estas questões e muitas outras que surgem a cada momento.

                                                       - IX -

                                                           Epílogo

Há, doravante, no que se refere à ordem social e política, um problema específico da infância, a exemplo da sexualidade, da droga, da violência, do ódio – de todos os problemas mais insolúveis derivados da exclusão social. Como outros tantos domínios, a infância e a adolescência convertem-se hoje em espaço destinado por seu abandono à deriva e à delinquência.
J. Baudrillard, Tela Total

J. Baudrillard ( Baudrillard, 1997 ), pensador sobre a condição pós-moderna , nos recomenda  calma , crianças sempre haverá . Mas como ? Objeto de curiosidade ou de perversão sexual, ou de compaixão ou de manipulação e de experimentação pedagógica ou simplesmente como vestígio de uma genealogia do vivo ?

 A modernidade tem ainda, com todas as suas  crises, valores e paradigmas necessários ao humano e sua cultura , embora haja um mal-estar nesta cultura… Mesmo um político conservador, como Francisco Welffott, reconhece a relação entre a globalização e a criação de conjuntos humanos descartáveis, quando escreve ( Wellfortt,  2000 ):

Um dos problemas mais graves do capitalismo na época da globalização é a criação de grandes conjuntos humanos considerados “ desnecessários “ ( descartáveis ) do ponto de vista econômico.

A violência, desta maneira,  está presente nesta globalização que se torna cada vez mais excludente sob o ponto de vista social, pois o avanço tecnológico não significa, necessariamente, um avanço de condições mais humanas para as populações.

Temos hoje mais de 30 guerras regionais, em todos os continentes, onde as vítimas fatais são principalmente as populações civis com  aproximadamenre 90 % de todas as baixas: na I Grande Guerra ( 1914-18 ) morreram cêrca de 15% de civis e na II Grande Guerra ( 1939-45 ) foram 45 %. Estes dados representam principalmente crianças, mulheres e idosos.

Em nosso país, desde há alguns anos, as três primeiras causas de óbito entre os jovens devem-se a causas relacionadas à violência. Vejamos alguns dados publicados no editorial da Folha de São Paulo  ( A2, 13 de abril de 2001 ), sob o título Juventude Assassinada.

... segundo a recém-divulgada Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, homicídios, suicídios e acidentes de trânsito ( as chamadas mortes por causa violenta ) foram responsáveis, no ano de 1998, por 68% dos óbitos entre os homens na faixa entre 15 e 19 anos. Em 1992 essa proporção era de  62%. Mas essa é a média para todo o território nacional. No sudeste ela aumenta para 73%. No Estado de São Paulo, 77 em cada 100 jovens mortos no ano de 1998 tombaram por causas violentas.

Os inegáveis avanços tecnológicos da globalização devem ser disponibilizados para o progresso das condições humanas. O desenvolvimento necessita ser avaliado a partir de indicadores sociais e não exclusivamente em função dos aspectos econômicos. Não se trata de negar o avanço tecnológico da globalização, repito, pois é necessário, mas sim de colocá-lo para disposição de todos e não apenas a serviço de uns poucos.

Existe hoje, como escreveu  Sigmund Freud no final da década de 20 ( Freud, 1930 ), um mal-estar na civilização.  É certo que ele levantava questões relativas ao estatuto do sujeito na modernidade, pois a psicanálise é uma leitura da subjetividade e de seus impasses na modernidade ( Birman, 1998 ), mal-estar este que, entretanto, podemos estender para a pós-modernidade e seus intentos de dessubjetivação. Um conjunto significativo de autores tem escrito sob o tema, desde  o ponto de vista psicanalítico ( Rouanet,  1987; Rouanet, 1993; Costa, G & Katz, G.1996 ; Bierman, 1998; Rocca, 2000; Cukier, 2000 ), enfatizando as alterações psíquicas que se observa relacionadas, diretamente ou indiretamente, com as questões levantadas neste texto. Elisabetta de Rocca ( Rocca, 2000 ) considera o  seguinte:

A cultura pós-moderna, caracterizada pelo domínio da imagem e velocidade e massificação da informação, sustenta aspectos eróticos e tanáticos. Entre os primeiros está a possibilidade de um acesso mais rápido e completo do conhecimento global e uma conscientização cada vez maior da inexistência de verdades definitivas e completas, o que contribui para destruir dogmatismos estéreis e facilita o respeito pelo novo e pelo diferente. São fatores tanáticos a violência, a superficialidade, a pouca qualificação dos valores trasncendentes e a excessiva importância que se outorga às possessões visíveis. O sujeito-ideal ( termo com o qual Piera Aulangier denomina a parte do superego que dá conta da incorporação dos valores predominantes no contexto socio-cultural ). É, em nosso tempo, um ser perfeito, complexo e exitoso, o que supõe uma negação do limite e da castração. Ideal de completude narcisista, que permite qualificar a cultura atual de falocêntrica ou fálico-narcisista. Sabemos, como psicanalistas, que não aceder á castração conduz, real ou metafóricamente, à morte psíquica e/ou física. Se a Freud coube lutar contra o excesso de repressão, a nós hoje cabe – como testemunham as novas patologias – combater a violência que implica a proposta onipotente da cultura atual, que tende a dificultar nossa tarefa, porque potencializa o atrativo demoníaco da completude, sempre à espreita em algum canto do psiquismo. Dois aspectos da sociedade pós-moderna  requerem atenção particular. São eles: o ataque ao processo de pensamento que supõem a intensidade e a rapidez excessiva dos estímulos que dificultam as representações claras e o acesso ao pensamento, gerando vivências de caos e vazio; nulificação da história, à exigência de viver no imediatismo do presente que, somada às profecias de previsões catastróficas para a sobrevivência da espécie humana, incrementa a culpa patológica e diminui a possibilidade reparatória e as esperanças de projetar-se no futuro. O ataque ao pensamento e a desvalorização da história são realidades fáticas que exigem uma atenção particular e uma reflexão mancomunada, porque constituem verdadeiros desafios para o desempenho de nosso trabalho.

A autora desenvolve seus comentários muito próxima às observações que faço ao longo do texto. Na verdade estes são temas bastante discutidos em diversas áreas do conhecimento humanístico. Não tenho nenhuma dúvida da validade e da vitalidade da psicanálise neste momento, espaço da experiência humana, experiência compartida, de subjetivação e historicização, como instrumento de levar ao futuro, ao homem do novo século, alguns dos valores fundamentais da modernidade.

                                                   Bibliografia
Os textos colocados na bibliografia não estão  todos referidos no texto. Foram, entretanto, necessários para o desenvolvimento das idéias nele contidas: por isso sua presença na bibliografia, pois poderão ser úteis também ao leitor .

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